O velho e o mar

© Sandra Bernardo
O velho e o mar

Até me fica mal dizer isto, mas confesso que, de quando em quando, chego a ter pena do professor Cavaco. O vetusto presidente passa a maior parte do tempo mudo e quedo, decerto em reflexão, tão profunda quanto inócua, sobre o mundo e o país que ajudou a criar. E é um deus-nos-acuda: que ele não diz nada quando deve dizer; que só fala a propósito de minudências como o estatuto dos Açores ou a vulnerabilidade do correio electrónico; ou ainda que, tal como a polícia e os maridos enganados, o presidente só aparece quando não é preciso.

E se, vez por outra, o homem quebra o silêncio, é outro ai-jesus. Porque, dizendo, acabou por nada dizer, ou porque disse o que não devia ter dito, ou porque muito simplesmente não disse coisa com coisa, o que, aliás, já começa a ser um hábito.

Recentemente, o presidente Cavaco Silva voltou a falar, o que serviu para ficarmos todos a saber que ainda não morreu. Falou no dia da greve geral, para dizer que ia trabalhar, e numa entrega de prémios a jornalistas, onde até tentou fazer uma piada. Não resultou, mas conta a intenção.

Falou, ainda, num congresso de comunicações, para, entre outras coisas, exortar os portugueses a «ultrapassar o estigma que afastou Portugal do mar, da agricultura e da indústria.» Assim mesmo. Não disse, mas a gente sabe, que esse estigma foi ele próprio quem no-lo lançou – quando, nos anos que se seguiram à entrada do nosso País no mercado comum, se empenhou com grande zelo em cumprir e fazer cumprir as ordens de Bruxelas no sentido de desmantelar o tecido produtivo nacional.

Durante anos (sobretudo naqueles em que Cavaco Silva foi primeiro-ministro), agricultores receberam (muito) dinheiro para deixar as terras ao abandono, centenas de fábricas foram encerradas em nome da «competitividade», a frota pesqueira foi metodicamente abatida para satisfazer os desejos das grandes potências europeias.

Ao mesmo tempo, a saborosa fruta dos nossos pomares foi obrigada a normalizar-se segundo os «padrões europeus», os jaquinzinhos passaram à clandestinidade e o seu consumo começou a ser visto como uma espécie de pedofilia piscícola, e até o vinho-a-martelo ganhou estatuto legal – tudo para mostrar à «Europa» que merecíamos ser acolhidos no seu seio farto. 

Foram, ainda assim, bastantes as vozes que então se fizeram ouvir e que tentaram, debalde, fazer ver aos incautos que todo esse delírio alegadamente modernizador teria um preço. Estamos agora a pagá-lo.
Por tudo isto, não deixa de ser curioso que seja, hoje, Cavaco Silva a incitar os portugueses a ultrapassar o estigma que tem o seu nome e a sua marca. Poderia pensar-se que se trata de um saudável exercício de autocrítica, mas era exigir demais e o pobre não tem estudos para tanto.

De Marx, receio que o presidente apenas conheça algumas citações avulsas do mano Groucho e um ou outro trejeito de Harpo. Mas, de Hemingway, suspeito que nem um parágrafo lhe tenha, alguma vez, causado qualquer emoção. Fosse o presidente um homem de outras leituras para lá dos diversos tomos de relatórios-e-contas que já lhe terão passado pela ponta dos dedos, e admitiria vislumbrar um assomo de arrependimento no seu apelo.

Pode dar-se o caso, também, de Cavaco ter a esperança de que, regressando ao mar, a maioria de nós já não volte. Afinal, o ministro Gaspar e os outros têm-se esforçado em fazer tudo para que a vida dos portugueses se torne ainda mais insuportável do que já era. Se uns quantos optarem por se atirar ao mar, sempre são uns cobres que se poupam nos funerais. Isto, pelo menos, é o que devem pensar as cabeças desabitadas dos senhores do governo. Nesta comédia amoral, o presidente, coitado, tem de fazer o seu papel. Pardo, naturalmente.  

Jornal do Fundão | 13.Dez.2012